sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Perseguição às avessas

Desde as civilizações mais antigas (Egito, Fenícios, Sumérios, etc), a preocupação com a aparência física era importante. Essas sociedades, que já eram estratificadas, viam cada classe social se comportar de uma forma, vestir um determinado tipo de roupa ou um determinado tipo de ornamento que os identificavam pertencentes àquela classe social. Essa diferenciação de vestimentas acompanhou as mais diversas sociedades que temos notícias. Embora muitas divergissem totalmente em relação às crenças e aos costumes, as roupas – de maneira quase uníssona - eram capazes de dizer a qual estrato social pertenciam um indivíduo.

O Império Romano, o Império Grego, passando para a Idade Medieval e adentrando às Idades Moderna e Contemporânea (época em que de fato se estabeleceu o que entendemos de moda atualmente) podemos notar uma certa exclusão na maneira de se vestir: as classes sociais mais abastadas usavam roupas consideradas mais nobres, ao passo que as mais baixas usavam roupas de tecidos menos nobres e, muitas vezes, tentavam imitar os trajes dos que estavam no topo da pirâmide social. E quando, finalmente, tinham acesso àquele tecido ou se chegavam a resultados bem verossímeis, as classes mais altas, então se desinteressavam por aquela roupa e partiam para outra. Era uma perseguição às avessas (em que os ratos perseguiam os gatos e quando finalmente os visualizavam, então os gatos partiam para novas aquisições e assim a luta incessante continuava: ratos atrás dos gatos).

No final do século XIX, eis que surge uma das invenções mais uníssonas da moda (não em um primeiro instante, obviamente): o jeans. A priori, o jeans era relegado às categorias de trabalhadores. Uma senhora distinta das classes média e alta jamais usaria esse traje. E isso perdurou até meados do século XX. Aos poucos, a partir da década de 50 e 60 e mais fortemente nas décadas de 70 e 80, o jeans não só foi incorporado por todas as classes sociais, como também virou peça praticamente indispensável na maioria dos guarda-roupas das culturas ocidentais. Desse modo, o jeans talvez tenha sido uma das primeiras peças a atingir esse caráter universal e com mais um dado interessante: não foi uma roupa que veio de cima para depois ser incorporada pela camada de baixo, ao contrário: o jogo de gato e rato havia se invertido. Outrora era o rato que perseguia os gatos, mas agora não, o sistema estava fechado: o gato perseguindo o rato. Como o gato poderia manter o seu status se parecia que a briga às avessas havia cedido e cada vez mais os ratos tinham acesso ao que era dos gatos?

Entramos então numa nova fase de diferenciação: o surgimento das grandes grifes (que começou ainda no final do século XIX e se consolidou de fato no século XX). O importante, nesse instante (principalmente após os anos 70), não era mais o tipo de roupa que se usava, mas sim a grife. Essas lojas priorizavam o corte impecável, modelos quase exclusivos (quando não exclusivos) e o prêt-à-porter, introduzido pelo estilista Yves Saint Laurent. Essa foi a saída encontrada pelo gato para escapar da perseguição do rato. Cada vez mais, as lojas especializadas em um público de perfil abastado criavam inovações, designs arrojados e novas idéias. Mas os tempos eram outros: as lojas de conceito “fast fashion” estavam sendo criadas e essas tinham uma agilidade enorme na “releitura” das tendências para disponibilizá-las para a camada menos abastada da população. Gradualmente, surgiram várias lojas com esse conceito do “fast fashion”: Zara, H&M, MeXX e, em uma escala menor a própria C&A. Haveria, enfim, terminado a perseguição do rato ao gato?

De um certo ponto de vista sim. Seria uma visão muito ortodoxa acreditar que os abismos de outrora continuavam os mesmos. Como percebemos o que ocorre atualmente é que já não existe uma enorme diferença no modo de se vestir em relação à classe social (embora, indubitavelmente ainda exista). Prova disso, é que se antes, em outras civilizações, podíamos identificar claramente a que estrato social uma pessoa pertencia só pelas roupas que ela vestia, hoje, essa identificação é muito mais difícil, por vezes, identificável. Contudo, se a perseguição tivesse finalmente chegado ao fim, nada justificaria um jeans sair por 60 reais em uma loja fast fashion e outro sair por 600 reais em uma grife. Por mais que a lavagem seja diferenciada, por mais custoso que possa ter sido o jeans de 600 reais, certamente existe nele um grande valor agregado: o valor da marca. E se há muitas pessoas que pagam por ele – prova disso é a constante expansão do mercado de luxo, não só em países ricos, mas principalmente nos países emergentes – significa que ainda há gatos (e muitos) fugindo da perseguição dos ratos. Mas quais seriam os argumentos utilizados pelos gatos para pagar tanto?

Os argumentos principais são a exclusividade, melhor qualidade da roupa, melhor corte. De uma maneira geral, quando uma loja coloca um jeans de 600 reais para ser vendido, ela já fez o seu nome no contexto nacional ou internacional. E para competir com as redes de fast fashion (cada vez mais procuradas), há a necessidade inexorável de a grife estar constantemente aprimorando a sua qualidade, o seu corte, fazendo com que as pessoas, ao dar dez vezes a mais em um jeans tenham a garantia da qualidade daquela peça. Porém, até que extensão os argumentos utilizados pelos gatos são de fato integralmente verdadeiros? Em suma: ainda que o jeans de 600 reais possa ser melhor que o de 60, até que ponto ele de fato o é para justificar uma diferença de 10 vezes mais?

Nesse meandro conturbado entre a justificação dos gatos e a realidade dos fatos percebemos duas questões: sim, de fato um jeans de 600 reais de uma grife já com renome internacional, tende (EU DISSE TENDE) a ser de melhor qualidade do que um de 60 reais de uma rede de fast fashion. Todavia, uma diferença de 10 vezes mais parece injustificável e desproporcional. Entramos então na segunda questão: estariam esses gatos usando essas grifes (para além do já citado fato de elas possuírem qualidade) a fim de tentar mais uma vez fugir dos ratos? Em outras palavras, quando se paga 600 reais em um jeans, por mais qualidade que ele tenha, também não está implícito aí uma questão de status, de poder? E essa não seria uma forma mais sutil, porém ainda uma forma de alijar os gatos dos ratos? Nesse âmbito, até que ponto, a perseguição do rato em relação ao gato chegou ao fim?

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