sábado, 19 de dezembro de 2009

Da Água ao Vinho e do Vinho a Água em um piscar de olhos







“Minha terra tem mendigos que pedem esmolá (sic), os mendigos que pedem esmola aqui não são os mesmos que pedem esmola lá (sic)”.

Os Indicadores:


Pobreza versus riqueza: um assunto que permeia a sociedade desde que o primeiro homem clamou para si o direito à propriedade privada. Nascia, dessa forma, essa dicotomia e com ela a desigualdade social.

A ideia de pobreza historicamente passou por diversos processos de modificação e, até a contemporaneidade, não encontrou nenhuma definição uníssona do que seja. Esse fato não é surpreendente, pois definições sócio-filosóficas de conceitos tão enraizados na mente humana se tornam um campo de batalha entre economistas, filósofos, sociólogos, antropólogos e o senso comum. Praticamente todos têm as suas concepções formadas.

O conceito da desigualdade social, no entanto, que parte de um pressuposto dicotômico de comparação entre riqueza monetária versus privação monetária, parece ser menos problemática, pelo menos a priori. Desigual é tão somente o que não é igual e, no caso, da desigualdade social basta haver um critério de comparação para falarmos se há ou não desigualdade social. Obviamente, estamos falando da definição meramente formal em que não há dúvidas: se em uma sociedade existem quatro pessoas, sendo que três ganham três unidas de valor e a outra ganha quatro, então existe diferença distributiva.

Pensando em comparar diferenças, analisando-as e partindo de alguns pressupostos, que claramente podem ser refutáveis (lê-se os pressupostos e não as diferenças) houve a necessidade de criação de alguns índices. Entre os índices criados, sempre há um ponto de partida, um paradigma estabelecido: mais pessoas alfabetizadas, por exemplo, é, em grande parte dos modelos, melhor do que menos pessoas alfabetizadas. Mais importante, todavia, é atentarmos para o fato de haver disparidades locais, regionais e globais em relação a esse pressuposto, por exemplo. Apesar de acreditarmos que grande parte das pessoas de bom senso não refutaria a ideia de um país com mais alfabetizados ser menos desigual em comparação a um de menos, ainda assim, essas pessoas não poderiam negar a diferença existente. E esse díspare seria, no paradigma capitalista em que vivemos, uma causa para a desigualdade social. Tendo essas reflexões como ponto inicial, a criação de alguns índices para medir as desigualdades foram estabelecidos. Discutiremos sobre três deles: o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o Índice de Pobreza Humana (IPH) e o GINI (nome dado em homenagem ao criador, o italiano Conrado Gini).

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), criado pelos economistas indiano Amartya Sen e paquistanês Mahbud ul Haq, procura comparar os países em três aspectos fundamentais: educação, renda e longevidade. No aspecto educação, o índice leva em conta várias vertentes, tais como: número de pessoas acima de 15 anos alfabetizadas, taxa bruta de freqüência escolar (nos diversos segmentos da educação). Um índice de pelo menos 96% da população adulta alfabetizada é considerado desejável. No campo da renda, há uma divisão entre o Produto Interno Bruto (PIB) pelo número de habitantes do país donde se obtém a renda per capita. Uma dada nação, por exemplo, que possua 100 pessoas e gere uma riqueza anual de um milhão de dólares, teria uma renda per capita de 10 mil dólares anualmente (renda essa parecida com as condições brasileiras). Para um país ser considerado desenvolvido, a renda per capita anual deve ser maior que 20 mil dólares. Por fim, temos o critério da longevidade, que mede a expectativa de vida média das pessoas de uma nação. Esse índice engloba indiretamente vários outros, tais como: acesso a saneamento básico e à saúde, grau de violência, etc, já que não se espera uma expectativa de vida alta para indivíduos carentes de tratamento de água e esgoto ou que vivam em lugares onde há muitos conflitos.

O segundo indicador a ser analisado é o Índice de Pobreza Humana (IPH), um critério praticamente atrelado ao IDH, visto que analisa justamente as privações expostas acima: educação, renda e longevidade para estabelecer o percentual de pobres em um país. Dentre alguns fatores investigados pelo IPH, temos os seguintes: número de mortes de recém nascidos (englobando também a mortalidade infantil), quantidade de alunos em idade escolar privados de educação básica, quantidade de crianças subnutridas e percentual da população do país que vive com menos de um ou dois dólares por dia. Cabe frisar, contudo, que o parâmetro de um ou dois dólares é variável de acordo com as condições dos países analisados. Nos desenvolvidos, esse índice salta para 11 dólares por dia, ao passo que nos países da África Subsaariana é de um dólar diário. Para a América Latina, o estudo recomenda um corte entre dois a quatro dólares. O interessante no IPH é o fato de ele equilibrar algumas possíveis distorções geradas pelo IDH e que serão comentadas mais tarde.

Outro parâmetro interessante e o único que lida diretamente com a desigualdade é o GINI. O índice mede o grau de concentração de renda de uma sociedade, demonstrando de que forma a riqueza do país é distribuída. Dessa maneira, a variação do indicador é de um (para o grau de concentração máximo em que apenas uma pessoa concentraria toda a riqueza existente no país) até zero (para nenhum grau de concentração em que a distribuição monetária seria rigorosamente repartida igualmente entre todos os membros da sociedade). Os dois extremos parecem um pouco utópicos. Os esforços são a fim de um GINI cada vez mais próximo de zero. Índices acima de 0,5 são considerados altos, entre 0,35 a 0,5 medianos e abaixo de 0,35 desejáveis.

A necessidade de se fazer uma análise conjunta dos três indicadores ocorre porque: primeiramente um IDH alto pode forjar uma desigualdade, a renda per capita de um país pode ser alta, por exemplo porque existem poucos que ganham demais e elevam esse índice. Isso acontece, por exemplo, em alguns países do Oriente Médio cuja riqueza do petróleo gera distorções homéricas entre as rendas dos mais ricos e a dos mais pobres. Dessa forma, o GINI serviria para percebermos que a renda per capita alta nesses países é em grande parte, irreal, pois a população como um todo não tem acesso a toda essa riqueza. Ademais, países com uma educação fundamental de qualidade e compulsória e relativamente estáveis podem ter IDH altos puxados por grande número de alfabetizados e expectativa de vida satisfatória (uma vez que o país se encontra politicamente estabilizado). Isso não descarta, contudo, que uma parcela significativa da população seja considerada pobre, o que ocorre, por exemplo, com Cuba. O país tem ótimos indicadores de educação (quase 100% da população é alfabetizada) e uma expectativa de vida alta (78,3 anos). A renda per capita, todavia, é de apenas 4.500 dólares, ou seja, menos de um terço do necessário para o país ser considerado desenvolvido. Ainda assim, Cuba ostenta um bom IDH (pois dois dos três fatores medidos pelo índice são considerados altos), mas isso não impede que o IPH cubano seja elevado. Por isso, mais uma vez existe a necessidade de uma análise em conjunto dos três indicadores.

As Desigualdades entre países


Devidamente explicados todos os índices, partiremos agora para as comparações entre as desigualdades expostas pelo IDH, IPH e GINI entre Noruega e Serra Leoa. Por que a escolha desses países? Primeiro porque a Noruega vem ocupando há muito tempo os primeiros lugares no IDH, enquanto Serra Leoa os últimos. Ademais, as diferenças não param por aí: a Noruega é uma das nações com menor IPH e GINI, em oposição, Serra Leoa apresenta um dos maiores níveis desses dois indicadores.

Concernente ao IDH, os últimos números divulgados em outubro de 2009 (com dados fornecidos pelos países de 2007), a Noruega ocupava o primeiro lugar no índice com um IDH de 0,971 (quanto mais próximo de 1, mais desenvolvido). Serra Leoa estava na antepenúltima posição (o 180ª país da lista) com um número que não passava de 0,365. Para melhor compreendermos essas diferenças, vamos comparar os três indicadores básicos referentes ao IDH de cada país. Referente à taxa de alfabetização, a Noruega ostenta um índice de 99% de alfabetos, em Serra Leoa, apenas 34,8% das pessoas acima de 15 anos são alfabetizadas. A expectativa no primeiro é de 80,2 anos, no segundo não passa dos 42,6 anos. Praticamente a metade. Finalmente, em relação ao último indicador, temos o seguinte abismo: renda per capita norueguesa 53.152 dólares, renda per capita leonesa 692 dólares. Parece assustador, pois é uma diferença de 76 vezes a mais para a Noruega. Em quanto tempo, ainda que o país escandinavo parasse de crescer totalmente a nação africana chegaria a essa renda per capita?

Em relação ao IPH, a Noruega não está no topo (quem ocupa essa posição é a Suécia com índice próximo a 6%),mas está próximo dele. O país não tem mais que 10% de pessoas consideradas pobres e isso adotando os critérios mais rígidos que seriam de pessoas que vivam com até 14 dólares por dia. Para se ter uma noção, se esses critérios fossem adotados no Brasil, famílias de quatro pessoas, com renda menor de 3.000 reais, seriam consideradas pobres. Como já havíamos dito, os critérios do IPH são relativizados de acordo com os países, e no caso de Serra Leoa dos rigorosos 14 dólares, passariam a ser considerados pobres os que vivessem com menos de um dólar diariamente. Ainda assim, o país apresenta um índice pouco animador: mais de 50%, ou seja, mais da metade da população do país vive com menos de um dólar e fazem parte, portanto, do grupo dos miseráveis.

Ao que tange o GINI, novamente o abismo é colossal. Parece até repetição dos parágrafos acima, mas é interessante compararmos todos os dados para que os leitores percebam o quão homérico é o contraste. O país nórdico apresenta um dos menores GINIS (apesar de não ocupar a primeira posição é, novamente um dos primeiros), com um índice de apenas 0,258 (considerado excelente). Já a nação africana possui 0,629 nesse indicador. Como já falamos, mas cabe aqui relembrar, para uma maior compreensão, números acima de 0,500 são considerados muito altos (países que apresentam grande concentração de renda), entre 0,350 e 0,500 considerados médios (países que distribuem a renda de modo razoavelmente satisfatório) e finalmente um índice abaixo de 0,350 é considerado o desejável (nações com pouco grau de concentração de renda). Nesse quesito, o país mais igual do mundo é a Dinamarca com um GINI de apenas 0,217.


E as desigualdades brasileiras?


Até agora, apesar de termos mostrado tantas desigualdades, falamos de lugares longínquos para a maior parte da população brasileira, muito distante da realidade em que vivemos. Não é de se espantar, todavia, que o Brasil, um país conhecido no mundo por uma das piore distribuições de renda, também apresente diferenças abissais entre regiões e até entre bairros do mesmo município. Antes de fazermos comparações e, provavelmente, deixar os mais incautos chocados com tamanhos díspares, precisamos salientar algumas melhorias pelas quais o país passou.

Desde 1994 com a implantação do plano real, o Brasil vem passando por uma estabilidade econômica ainda não vista no país. Com a criação da nova moeda, os índices de inflação altíssimos tornaram-se problemas do passado e hoje o país ostenta números de nações desenvolvidas. Esse controle inflacionário permitiu um ganho real do salário dos trabalhadores. Paralelamente a isso, programas criados no final da década de 90 e expandidos nos anos 2000, dentre eles o Bolsa Família, possibilitaram a melhoria de vida de pessoas que outrora se enquadram abaixo da linha da pobreza. Para se ter uma noção, o salário mínimo em meados de 1994 era de apenas 64 reais. Já o custo de vida necessário para prover uma família de quatro pessoas (de acordo com os preceitos da Constituição do que seja o salário mínimo), naquela época, segundo o Dieese era cerca de 650 reais, ou seja, uma diferença de mais de nove vezes. Em 2009, 15 anos depois, o salário mínimo é de 465 reais e, embora ainda insuficiente para suprir sequer as necessidades de uma família de quatro pessoas em 1994, representa apenas um pouco mais quatro vezes e meia menos do mínimo necessário (atualmente de 2108 reais, de acordo com o Dieese). Além disso, o índice GINI brasileiro, embora muito alto, vem apresentado queda desde 2003. Em 2009, pela primeira vez desde a década de 60, o indicador brasileiro esteve abaixo dos 0,500.

Os maiores problemas, contudo, continuam sendo o marasmo e a inércia social. Apesar das melhorias expostas acima, quando comparado a outros países que também se desenvolveram, as notícias já não são tão boas. Em 2000, com IDH de 0,785 o Brasil ocupava a 63ª colocação em um ranking de mais de 170 países. No último relatório divulgado em outubro desse ano o Brasil obteve um índice de 0,813. Evolui, mas evolui pouco, tanto é que se outrora ocupava a 63ª posição, ocupamos agora a 75ª.

Mensurar o Brasil como um todo é como agrupar uma série de países de realidades socioeconômicas completamente díspares. Felizmente não há nada no Brasil que chegue perto de Serra Leoa, mas há muito no Brasil que chega e ultrapassa a Noruega. E o pior: são pouquíssimos lugares, em detrimento de muitos que, se não chegam a ser comparáveis com o país africano, perdem e muito para a média dos países latinos.

Em termos regionais, temos Santa Catarina e Alagoas ocupando os extremos opostos. Não consideramos aqui o Distrito Federal que, caso fosse considerado, ocuparia o topo do ranking. O estado sulista apresentava um IDH de 0,840 em 2005 (último dado disponível) ante a um indicador alagoano de apenas 0,677. A renda per capita em Santa Catarina era de 17.500 reais anualmente, a expectativa de vida de pouco mais de 75 anos e um índice de analfabetismo que não chegava a 5%.Já Alagoas possuía uma renda per capita anual de apenas 5.164 reais, expectativa de vida de apenas 66 anos e 26,4% de analfabetos. Parece uma diferença gigante para o mesmo país, mas tem pior.

Como dentro de uma mesma cidade pessoas podem viver de forma tão distinta? É uma pergunta curiosidade e real. Em 2000, a Gávea desfrutava de um IDH norueguês. Aliás, os últimos dados disponíveis, os daquele ano, colocavam a Gávea com índice de 0,970. (Esse valor só foi alcançado pela Noruega em 2009). Disso, concluímos que se a Gávea fosse um país, provavelmente, teria, hoje, um IDH superior a 0,980 e seria de longe o mais desenvolvido do planeta. Por outro lado, o Complexo do Alemão, no mesmo ano, apresentava um índice de apenas 0,711 e era o bairro de pior colocação na cidade do Rio de Janeiro. O Complexo do Alemão para quem não sabe é um conjunto de favelas existentes na Zona Norte da cidade. Agora, se voltarmos aos dados regionais e compararmos o IDH de Alagoas, em 2005, com o do Complexo do Alemão em 2000, teríamos uma grande surpresa: o pior bairro da cidade do Rio de Janeiro detinha cinco anos antes, um IDH superior ao estado de Alagoas.

Não estamos mais na Noruega, não estamos mais em Serra Leoa. Estamos no Brasil e falamos de situações desiguais em territórios muitas vezes próximos demais. Tivemos a exposição de situações de imenso contraste nessa matéria, mas ainda ficou faltando muito: entender o porquê disso, como isso pode ser mudado, o que alguns estudiosos pensam sobre isso e como é o dia-a-dia dessas pessoas, sejam elas esbanjando um alto IDH ou implorando por um mais alto. Obviamente, nós do Blog Cultura e Diversidade não iríamos deixar o leitor sem resposta a esses assuntos tão complexos e por isso, ao longo das próximas semanas (e estamos trabalhando com afinco para isso), publicaremos mais uma série de reportagens com o mesmo foco, mas dessa vez não mas mostrando as desigualdades já explicitadas aqui e sim tentando entendê-las e, além disso, refletir sobre elas.




Um comentário:

  1. O artigo sobre as desigualdades sociais do país e do mundo está excelente...O redator expõe muito bem os problemas mundiais com grande desenvoltura e um grande conhecimento do assunto.Parabéns...........De fato o marasmo e a inércia social do nosso país são uns dos principais problemas...No Brasil , enquanto prevalecer a impunidade, a corrupção vai prevalecer.... e, as desigualdades vão aumentar cada vez mais...acarretando, obviamente, uma miséria maior e uma explosão ainda mais acentuada da violência....Mais uma vez parabéns pelo blog...Zélia

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